quinta-feira, 27 de agosto de 2009

EU TE COMPREENDO - Antonio Roberto Soares




Sim, eu te compreendo ...

Eu sei das tuas tensões, dos teus vazios e da tua inquietude. Eu sei da luta que tens travado à procura de Paz. Sei também das tuas dificuldades para alcançá-la. Sei das tuas quedas, dos teus propósitos não cumpridos, das tuas vacilações e dos teus desânimos.

Eu te compreendo.. . Imagino o quanto tens tentado para resolver as tuas preocupações profissionais, familiares, afetivas, financeiras e sociais. Imagino que o mundo, de vez em quando, parece-te um grande peso que te sentes obrigado a carregar. E tantas vezes, sem medir esforços.

Eu conheço as tuas dúvidas, as dúvidas da natureza humana. Percebo como te sentes pequeno quando teus sonhos acalentados vão por terra, quando tuas expectativas não são correspondidas. E essas inseguranças com o amanhã? E aquela inquietação atroz em não saberes se amanhã as pessoas que hoje te rodeiam ainda estarão contigo? De não saberes se reconhecerão o teu trabalho, se reconhecerão o teu esforço. E, por tudo isto, sofres, e te sentes como um barco sozinho num mar imenso e agitado.

E não ignoro que, muitas vezes, sentes uma profunda carência de amor. Quantas vezes pensaste em resolver definitivamente os teus conflitos no trabalho ou em casa. E nem sempre encontraste a receptividade esperada ou não tiveste força para encaminhar a tua proposta. Eu sei o quanto te dói os teus limites humanos e o quanto às vezes te parece difícil uma harmonia íntima. E não poucas vezes, a descrença toma conta do teu coração.

Eu te compreendo.. . Compreendo até tuas mágoas, a tristeza pelo que te fizeram, a tristeza pela incompreensão que te dispensaram, pelas ingratidões, pelas ofensas, pelas palavras rudes que recebeste. Compreendo até as tuas saudades e lembranças. Saudade daqueles que se afastaram de ti, saudade dos teus tempos felizes, saudade daquilo que não volta nunca mais... E os teus medos? Medo de perderes o que possuis, medo de não seres bom para aqueles que te cercam, medo de não agradares devidamente às pessoas, medo de não dares conta, medo de que descubram o teu íntimo, medo de que alguém descubra as tuas verdades e as tuas mentiras, medo de não conseguires realizar o que planejaste, medo de expressares os teus sentimentos, medo de que te interpretem mal.

Eu compreendo esses e todos os outros medos que tens dentro de ti. Sou capaz de entender também os teus remorsos, as faltas que cometeste, o sentimento de culpa pelos pequenos ou grandes erros que praticaste na tua vida. E sei que, por causa de tudo isso, às vezes te encontras num profundo sentimento de solidão. É quando as coisas perdem a cor, perdem o gosto e te vês envolto numa fina camada de indiferença pela vida. Refiro-me àquela tua sensação de isolamento, como se o mundo inteiro fosse indiferente às tuas necessidades e ao teu cansaço. E nesse estado, és envolvido pelo tédio e cada ação ou obrigação exige de ti um grande esforço. Sei até das tuas sensações de estares acorrentado, preso; preso às normas, aos padrões estabelecidos, às rotineiras obrigações: "Eu gostaria de... mas eu tenho que trabalhar, tenho que ajudar, tenho que cuidar de, tenho que resolver, tenho que!...". Eu te compreendo.. . Compreendo os teus sacrifícios.

E a quantas coisas tens renunciado, de quantos anseios tens aberto mão!... E sempre acham que é pouco... Pouca coisa tens feito por ti e tua vida, quase toda ela, tem sido afinal dedicada a satisfazer outras pessoas. Sei do teu esforço em ajudar as outras pessoas e sei que isso é a semente de tuas decepções. Sei que, nas tuas horas mais amargas, até a revolta aflora em teu coração. Revolta com a injustiça do mundo, revolta com a fome, as guerras, a competição entre os homens, com a loucura dos que detêm o poder, com a falsidade de muitos, com a repressão social e com a desonestidade. Por tudo isso, carregas um grau excessivo de tensões, de angústia e de ansiedade. Sonhas com uma vida melhor, mais calma, mais significativa. Sei também que tens belos planos para o amanhã. Sei que queres apenas um pouco de segurança, seja financeira ou emocional, e sei que lutas por ela.

Mas, mesmo assim, tuas tensões continuam presentes. E tu percebes estas tensões nas tuas insônias ou no sono excessivo, na ausência de fome ou na fome excessiva, na ausência de desejo para o sexo ou no desejo sexual excessivo. O fato é que carregas e acumulas tensões sobre tensões: tensões no trabalho, nas exigências e autoritarismos de alguns, nas condições inadequadas de salário e na inexistência de motivação, nos ambientes tóxicos das empresas, na inveja dos colegas, no que dizem por trás. Tensões na família, nas dependências devoradoras dos que habitam a mesma casa; nos conflitos e brigas constantes, onde todos querem ter razão; no desrespeito à tua individualidade, no controle e cobrança das tuas ações. Eu te compreendo, e te compreendo mesmo. E apesar de compreender- te totalmente, quero dizer-te algo muito importante. Escuta agora com o coração o que te vou dizer:

Eu te compreendo, mas não te apoio! Tu és o único responsável por todos estes sentimentos. A vida te foi dada de graça e existem em ti remédios para todos os teus males. Se, no entanto, preferes a autocomiseraçã o ao invés de mobilizares as tuas energias interiores, então nada posso te oferecer. Se preferes sonhar com um mundo perfeito, ao invés de te defrontares com os limites de um mundo falho e humano, nada posso te oferecer.

Se preferes lamentar o teu passado e encontrar nele desculpas para a tua falta de vontade de crescer; se optastes por tentar controlar o futuro, o que jamais controlarás com todas as suas incertezas; se resolveste responsabilizar as pessoas que te rodeiam pela tua incompetência em tratar com os aspectos negativos delas, em nada posso te ajudar. Se trocaste o auto apoio pelo apoio e reconhecimento do teu ambiente, então nada posso te oferecer. Se queres ter razão em tudo que pensas; se queres obter piedade pelo que sentes; se queres a aprovação integral em tudo que fazes; se escolhestes abrir mão de tua própria vida, em nome do falso amor, para comprares o reconhecimento dos outros, através de renúncias e sacrifícios, nada posso te oferecer. Se entendeste mal a regra máxima "Amar ao próximo como a ti mesmo", esquecendo-te de amar a ti mesmo, em nada posso te ajudar.

Se não tens um mínimo de coragem para estar com teus próprios sentimentos, sejam agradáveis ou dolorosos; se não tens um mínimo de humildade para te perdoares pelas tuas imperfeições; se desejas impressionar os outros e angariar a simpatia para teus sofrimentos; se não sabes pedir ajuda e aprender com os que sabem mais do que tu; se preferes sonhar, ao invés de viver, ignorando que a vida é feita de altos e baixos, nada posso te oferecer.

Se achas que pelo teu desespero as coisas acontecerão magicamente; se usas a imperfeição do mundo para justificar as tuas próprias imperfeições; se queres ser onipotente, quando de fato és simplesmente humano; se preferes proteção à tua própria liberdade; se interiorizaste em ti desejos torturadores; se deixaste imprimirem-se em tua mente venenosas ordens de: "Apressa-te! ", "Não erres nunca!", "Agrade sempre!"; se escolheste atender às expectativas de todas as pessoas; se és incapaz de dar um não quando necessário, em nada posso te ajudar. Se pensas ser possível controlar o que os outros pensam de ti; se pensas ser possível controlar o que os outros sentem a teu respeito; se pensas ser possível controlar o que os outros fazem; se queres acreditar que existe segurança fora de ti, repito:

Eu te compreendo mas, em nome do verdadeiro Amor, jamais poderia apoiar-te! Se recusas buscar no âmago do teu ser respostas para os teus descaminhos, se dás pouca importância a teus sussurros interiores; se esqueceste a unidade intrínseca dos opostos em nossa vida terrena; se preferes o fácil e abandonastes a paciência para o Caminho; se fechaste teus ouvidos ao chamado de retorno; se perdeste a confiança a ponto de não poderes entregar tua vida à vontade onipotente de Deus; se não quiseste ver a Luz que vem do Leste; se não consegues encontrar no íntimo das coisas aquele ponto seguro de equilíbrio no meio de todas as tormentas e vicissitudes; se não aceitas a tua vocação de Viajante com todos os imprevistos e acidentes da Jornada; se não queres usar o tempo, o erro, a queda e a morte como teus aliados de crescimento, realmente nada posso fazer por ti.

Se aspiras obter proteção quando o que precisas é Liberdade; se não descobriste que a verdadeira Liberdade e a autêntica Segurança são interiores; se não sabes transformar a frase "Eu tenho que..." na frase "Eu quero!"; se queres que o fantasma do passado continue a fechar teus olhos para a infinidade do teu aqui e agora; se queres deixar que o fantasma do futuro te coloque em posição de luta com o que ainda não aconteceu e, provavelmente, não chegará a acontecer; se optaste por tratar a ti mesmo como a um inimigo; se te falta capacidade para ver a ti mesmo como alguém que merece da tua própria parte os maiores cuidados e a maior ternura; se não te tratas como sendo a semente do próprio Deus; se desejas usar teus belos planos de mudar, de crescer, de realizar, como instrumentos de auto-tortura; se achas que é amor o apego que cultivas pelos teus parentes e amigos; se queres ignorar, em nome da seriedade e da responsabilidade, a criança brincalhona que habita em ti; se alimentas a vergonha de te enternecer diante de uma flor ou de um por de sol; se através da lamentação recusas a vida como dádiva e como graça, não posso te apoiar.

Mas, se apesar de todo o sono, queres despertar; se apesar de todo o cansaço, queres caminhar; se apesar de todo o medo, queres tentar; se apesar de toda acomodação e descrença, queres mudar, aceita então esta proposta para a tua Felicidade: A raiz de todas as tuas dificuldades são teus pensamentos negativos. São eles que te levam para as dores das lembranças do passado e para a inquietação do futuro. São esses pensamentos que te afastam da experiência de contato com teu próprio corpo, com o teu presente, com o teu aqui e agora e, portanto, distanciando- te de teu próprio coração. Tens presentes agora as tuas emoções? Tens presente agora o fluxo da tua respiração? Tens presente agora a batida do teu coração? Tens agora a consciência do teu próprio corpo? Este é o passo primordial. Teu corpo é concreto, real, presente, e é nele que o sofrimento deságua e é a partir dele que se inicia a caminhada para a Alegria.

Somente através dele se encaminha o retorno à Paz. Jamais resolverás os teus problemas somente pensando neles. Começa do mais próximo, começa pelo corpo. Através dele chegarás ao teu centro, ao teu vazio, àquele lugar onde a semente germina. Através da consciência corporal, galgarás caminhos jamais vistos, entrarás em contato com os teus sentimentos, perceberás o mundo tal como é e agirás de acordo com a naturalidade da vida.

Assume o teu corpo e os teus sentimentos, por mais dolorosos que sejam; assume e observa-os, simplesmente observa-os. Não tentes mudar nada, sê apenas a tua dor. Presta atenção, não negues a tua dor. Para que fingir estar alegre se estás triste? Para que fingir coragem se estás com medo? Para que fingir amor se estás com ódio? Para que fingir paz se estás angustiado? Não lutes contra teus sentimentos, fica do teu próprio lado, deixa a dor acontecer, como deixas acontecer os bons momentos. Pára, deixa que as coisas sejam exatamente como são.

Entra nos teus sentimentos sem os julgar, não fujas deles, não os evites, não queira resolvê-los escapando deles - depois terás de te encontrar com eles novamente, é apenas um adiamento, uma prorrogação. Torna-te presente, por mais que te doa. E, se assim fizeres, algo de muito belo acontecerá! Assim como a noite veio, ela também se irá e então testemunharás o nascer do dia, pois à noite o sol escurece até a meia-noite e, a partir daí, começa um novo dia.

Se assim fizeres, sentirás brotar de dentro de ti uma força que desconhecias e te sentirás renovado na esperança e a vida entrando em ti. Se assim fizeres, entenderás com o coração que a semente morre mesmo, totalmente, antes de germinar e que a morte antecede a vida. E, se assim fizeres, poderei dizer-te então que: Eu te Compreendo e que, assim, tens todo o meu apoio! E verás com muita alegria que, justamente agora, já não precisas mais do meu apoio, pois o foste buscar dentro de ti e o encontraste dentro da tua própria dor! A CAUSA É INTERIOR.

O homem traz a semente de sua vida dentro de si mesmo. O que quer que lhe aconteça, acontece por sua própria causa. As causas externas são secundárias; as causas internas são as principais. Existe a possibilidade de uma transformação. ..E que só você pode conseguir, basta querer...

(Antônio Roberto Soares)
Contato com o blog: antoniocneto@terra.com.br

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

MEU TIO DO MATÃO - Uma singela homenagem ao meu amado Tio Zé Magno

Meu Tio Zé Magno morava no Matão com Tia Lica.
Matão que depois virou Ouro Verde, por causa do café.
Com suas ruas tortuosas, suas casas velhas
decoradas com pedras, imbés, árvores imensas.
Muitos coqueiros e pés de figo para os doces de Dona Deocleciana,
com aquele narigão e a cara vermelha,
debaixo da pituca grisalha, lisa e bem comportada.
Tio Zé Magno não montava, mas empurrava a bicicleta
do seu lado, como quem acompanha a namorada
e de vez enquando, fazia até um carinho no cangote dela.
A casa deles também era bonita e grande, com muitas janelas,
pés de hibiscos, bananeiras, abacateiros misturados com galinhas,
gansos, patos, marrecos, gatos e cachorros preguiçosos e dorminhocos.
Também, convivendo com Tia Lica, não podia ser diferente.
Ele era carpinteiro, como o santo.
Acho que foi por causa do nome.
Pena que Tia Lica não servia para ser Nossa Senhora,
era feia, velha, dizia-se cega e gostava de fazer umas ruindadezinhas.
Pequenas, mas ruindades.
Ela rangia os dentes e fechava a cara pra dizer as coisas
e aquilo me dava um medo danado.
Ela também não tinha filhos.
Contava que deu à luz as gêmeas: Cordai e Magali,
mas que as duas morreram ao nascer.
(Deus que me perdoe, mas ele sabe o que faz...)
Dizia que o parto foi feito às pressas, com garfo e faca de mesa.
E eu que não sabia o que era parto,
pensava que o médico queria comer as crianças
e ficava matutando nisso antes de dormir.
No quintal, a oficina cheia de serragem e pedaços de madeira.
Os pés de beladona muito carregados com aquela flor imensa
que parecia as mulheres que a gente vê nos livros de história
com as saias longas e cheias de babados coloridos.
Eu ficava olhando aquilo e inventando coisas.
De noite, com frio,
as mulheres colocavam seus xales e todos iam conversar na sala.
Minha vó falava das receitas e da doença de D. Rita, sua vizinha.
Meu Tio Zezinho – irmão caçula do meu pai mostrava
com orgulho os primeiros fios do bigode. Coitado...
Tia Lica aproveitava para exibir seu tesouro:
uma coleção com muitas toalhas de mesa de plástico, coloridas.
Tinha uma de crianças holandesas colhendo tulipas,
um verdadeiro espetáculo.
Uma de frutas, a coisa mais linda!
Outras de colunas gregas,
patos, peixes, flores, passarinhos...
Uma infinidade...
Depois ela dobrava uma a uma com todo cuidado, toda orgulhosa.
Minha tia Luiza se propunha a ajudar,
mas ela agradecia e afastava a sua mão para que ninguém as tocasse.
Tio Zé Magno raspava a garganta e ia para a cozinha,
passava um café daqueles torrados em casa
e o cheiro rescendia pela vizinhança.
Um cheiro bom de café de quem não tem pecado.
Tia Lica era meio manca e muito lenta.
Arrastava vagarosamente os pesados chinelos pelo quintal e pela casa,
passando as mãos no cabelo e reclamando das dificuldades da vida.
Mas para ela – que se fazia de cega para não fazer nada – era até muito fácil.
Tio Zé Magno cheio de paciência entregava nas suas mãos o pente,
as meias, o prato de comida que ele mesmo fazia
e a xícara grandona de café que ela sorvia gole a gole,
sentindo bem o gosto com os olhos fechados.
E, de vez em quando,
batia com força o fundo da xícara pesada na mesa,
como se fosse uma governadora.
Tio Zé do Matão cheirava rapé e dizia que era dos bons.
Fez-me um carrinho de madeira que era uma beleza,
com uns belesqüetes encima que
rodavam, rodavam, rodavam juntos e no mesmo ritmo.
E eu os pintei de várias cores com tinta de urucum,
de açafrão e corantes de papel de seda.
Ficou maravilhoso e eu brincava com aquilo o dia inteiro.
Era o que bastava para o meu coração ficar derramando de felicidade.
Tio Zé Magno deve ter virado Santo.
Pois além de agüentar as cavalices de Tia Lica
ele me deu de presente a maior alegria do mundo
e dar alegria pra criança é o princípio básico para a santificação...
...Eu gostei da toalha das crianças holandesas
e pedi à Tia Lica para deixá-la na mesa.
Ela titubeou, franziu a testa. rangeu os dentes,
mas me atendeu com um sorrisinho meio desconfiado.
Foi a única boa ação de Tia Lica que já se teve notícia.
E foi só por isso que ela ganhou o céu...


Antonio da Costa Neto
antoniocneto@terra.com.br

sábado, 8 de agosto de 2009

"SÓ QUEM TEM VACA É QUE GANHA BEZERRO"


DESIGUALDADE SOCIAL NO BRASIL:
É POSSÍVEL, É NECESSÁRIO, É CONVENIENTE COMBATÊ-LA?

(*)Antonio da Costa Neto

“Eu nunca quis pouco
falo de quantidade e intensidade.
Bomba de hidrogênio; luxo para todos...
Muito...
Eu sempre quis muito e ...
Muito é muito pouco...”


(Caetano Veloso)


INTRODUÇÃO


Muito se fala em desigualdade social no Brasil e no mundo. Especialmente numa estrutura sócio-econômica como a nossa, onde a grande maioria da população encontra-se abaixo do nível mínimo da miséria total, ou seja, na carência, muitas vezes, quase que absoluta. Enquanto isso, uma casta hegemônica, especial e privilegiada em todos os aspectos desfruta, não só de muitos benefícios materiais e intelectuais, como também dos meios de produzir e o que é mais sério, do poder de decidir principalmente, sobre as diretrizes que continuam a nortear o modelo de sociedade que beneficia os já quem já tem todos os privilégios, e, logicamente prejudica cada vez mais os menos favorecidos num eterno ciclo vicioso de dor, sofrimento, necessidades e crises.
Precisamos entender, segundo Demo(2 003), que a materialidade da pobreza não pode jamais ser relegada – carência de renda, emprego, moradia, remédios, comida - , mas menos ainda pode-se deixar de lado a manobra política implicada e que se constitui no cerne da fabricação da miséria. A carência engloba a manifestação externa da pobreza, que é, ao mesmo tempo, meio mais imediato de manipulação política. Servindo, especialmente como canal-filtro mais que eficiente para, digamos, ocultar os revezes do fenômeno da desigualdade social.
Pois, como os meios de sobrevivência não têm possibilidade de criação espontânea, capaz de satisfazer todas as necessidades e ganâncias; a extrema riqueza para poucos só pode ser concretizada com a fabricação da miséria para muitos. É um sintoma por demais lógico, dispensa maiores explicações teóricas ou mesmo práticas, é física pura que não pode ser, por exemplo, com fundida com a onipotência de um Deus que assim o quer. Devemos relativizar o fenômeno em si e entende-lo a partir da lógica simples com a qual ele nos apresenta. Mas como preferimos politicamente sermos cínicos e céticos, nós apenas optamos por não enxerga-lo e não entende-lo enquanto ele nos destrói a todos.
A cultura popular do interior goiano, onde eu nasci e me criei; inventou e repete dia-a-dia um refrão inicialmente folclórico, e, ao mesmo tempo, uma grande verdade. Segundo a qual “só quem tem vaca é que ganha bezerro”. Ou seja, o encaminhamento de um sistema que legaliza desigualdades, também as amplia, dando ao fenômeno um caráter absolutamente normal, legal e justo como se alguns fossem mais iguais do que os iguais, e, por isso mesmo, dignos e justos detentores de tudo, concentrando em suas mãos o poder e a renda, resultando, é óbvio na falta de tudo para os que não participam desta roda frenética dos socialmente privilegiados.
Assim, muitas as estruturas e conjunturas convergem para este ponto em todas as dimensões da sociedade, dentre as quais, para fins didáticos, podemos exemplificar: alguns pontos importantes. Na nossa estrutura administrativa quem ganha mais, trabalha menos. O trabalho de maior status é pago com melhores salários; realizado sob condições mais especiais, gerindo privilégios maiores para uns e prejudicando imensamente outros. O que considero mais grave é que, na empresa, assim como na vida, este processo se dá de uma maneira absolutamente antagônica. Ou seja, quem trabalha mais é justamente quem ganha menos. Quem ganha mais tem mais privilégios, mais benefícios; mais férias, menos controle. Enfim, quanto mais as diferenças avançam, melhor. Pois assim pode-se dar vazão e incremento ao processo efetivamente competitivo, perpetuando a diferença social em todos os seus demais aspectos. E que se afunila qualitativa e quantitativamente em termos de distribuição de renda; de religião; de condição social e sexual; intelectualidade e assim por diante.
No campo da administração, Tavares(2 000); nos retrata, de forma muito inteligente o tema desta mesma desigualdade, quando fala dos modelos organizacionais holísticos – como um dos instrumentos para busca de solução do problema, sobre sistemas de gestão em rede, que, além de aumentarem a eficiência dos processos de produção, visam igualmente a valorizar seus agentes. Descentralizar o poder de decidir e planificar o “status quo” das pessoas, gerindo por si, mais prazer, qualidade de vida e acesso aos meios que possam garantir um mínimo de dignidade para todas as pessoas. Equalizando a importância de tudo o que fazem em função da produção final da organicidade, que, em última análise, deve ser retornada em benefício real de todos os que constituem a sociedade global em que esta organização se firma e para a qual presta seus serviços. Utópico demais, poderiam dizer alguns. Mas utopia é aquilo que a gente não faz acontecer, eu, por exemplo, responderia de pronto. Mas, por outro lado, perante a dureza dos raciocínios e os atrasos conceituais que ainda vivemos, ainda estamos historicamente há milênios para encontrarmos este tipo de realidade.
Se analisarmos a questão - desta mesma desigualdade - em outros campos da ação social, veremos que ele se repete monotonamente em todas as demais dimensões: na política, na economia, na educação, nas famílias, enfim, em todos os ditos meios sociais. Apenas utilizando-se de estratégias e meios, discursos novos e medidas camufladas que falam em mudança no exato sentido de evita-la e para filtrar esta aparência, criando assim uma falsa estratégia de harmonia e moralidade. É na educação, notadamente no ensino superior, onde hoje, por exemplo, fala-se na maquiagem das quotas para os negros e outros litígios legalmente aceitos, que acabam por manter o mesmo sistema caótico no âmago da realidade social macro. O que, é claro, resolve aparentemente o aspecto quantitativo e imediato do problema, embora crie facções psicológicas, sociais e políticas até mais sérias. Coisas do tipo “negro é mental e intelectualmente incapaz e só entra na universidade se for pela janela”. Isto sem contar que o negro irá para uma universidade absolutamente racista, onde terá acesso a uma “ciência branca”; possivelmente para aprender a se subordinar mais facilmente ao paradigma de predomínio exclusivo para o branco, o macho e o capital; legalizando cientificamente a sua ainda maior dependência aos sistemas impostos.
As quotas para os negros entrarem na Universidade não seria mais uma estratégia camuflada, para, em longo prazo, acessar ainda mais o sistema orgânico e cultural das desigualdades sociais? E, igualmente por que criar quotas para os negros, se a maioria pobre de outras raças também não tem acesso à boa universidade pública, gratuita e supostamente de “boa qualidade” (restando saber para que e para quem esta qualidade realmente funciona e dá resultados) ? É justo criar mais um fator de desigualdade entre negros e pobres de outras raças? Isto não seria mascarar um sentimentalismo piegas que acaba por desvalorizar ainda mais a figura do negro? Não estaria aí oculta uma outra forma de racismo ainda mais refinada e com uma essência assistencialista fria e ao mesmo tempo extremamente maquiavélica? Depois de brancos e negros formados pelas Universidades, quem ocupará logicamente as melhores vagas possivelmente ofertadas no mercado de trabalho? Não seria esta mais uma questão para se refletir com muita profundidade sobre o fenômeno das desigualdades sociais neste País?
Aliás, aí, na questão dos privilégios absolutos do branco, do macho e do capital, já se estabelece o início da tríade das desigualdades sociais; pois são estes os fatores determinantes dos processos de poder e de suas especiais benesses e privilégios em todos os campos da ação humana.
É como caminham as civilizações contemporâneas. A estrutura do conhecimento continua nestas bases que são seguidas de perto pelos programas de recrutamento e seleção de pessoas para ocuparem; os postos de destaque no mercado de trabalho, nos meios sociais, na cultura, nas artes, na educação, enfim, em todos os segmentos.
Faz-se necessária uma verdadeira “revolução copernicana” em todos os meios onde os valores especulativos e muito antigos que direcionam benefícios e poderes para poucos, condenando milhões e milhões de pessoas à degradação e à barbárie. Devemos redefinir papéis e importâncias, dando a todos a relativização das suas funções dentro dos princípios fundamentais ditados pela milenar sabedoria chinesa que diz que: “nada é mais fundamental do que qualquer coisa. E na natureza, não existe nada nem mais e nem menos importante; os galhos que brotam são, harmoniosamente; uns longos, uns curtos”(Capra, 2001).
Particularmente acredito na necessidade de se definir políticas sociais verdadeiramente impactantes e capazes de reduzir estas desigualdades; pelo menos no sentido de garantir a todos um nível mínimo de vivência nos vários segmentos e exigências da sociedade atual. É fundamental que todos comam, morem, cuidem de sua higiene, lazer, prazer, saúde, transporte, educação, segurança, e, fundamentalmente, do seu pleno bem-estar e alegria de viver e de continuar a viver. Penso que é chegada a hora de transcendermos o paradigma dos rigores científicos, mas agregando às ciências valores e princípios que vão da solidariedade humana à ética profunda; que possa se preocupar em garantir a todos não só padrões de vida; mas igualmente instrumentos e meios de felicidade, no mínimo aquela considerada como socialmente aceitável.

PROPORCIONALIDADE: UMA TERCEIRA VIA

Estamos falando de desigualdades sociais como algo concretamente instalado e comprovado nos fenômenos que assolam a realidade cotidiana que hoje pode muito facilmente ser acompanhada e conhecida em todos os rincões do Planeta. A desigualdade está aí, escabrosa, fazendo acontecer suas intempéries e muitas vezes, levando a vida a padrões quase que insustentáveis. Se é possível a desigualdade, seria possível existir a igualdade? E aqui, quando falo em igualdade; isto não se torna ainda algo muito mais longínquo e praticamente sem condições ou esperanças de acontecer? Minha explicação é que a desigualdade pode ser caracterizada em muitos espaços, padrões e discernimentos maiores, menores, mais próximos ou distantes. Por isso desigualdade existe. Mas igualdade, não. Podemos, isto sim, falar, quando muito, em proporcionalidade; homeostase; equilíbrio dinâmico na distribuição de meios e condições para que todos vivam e o façam com a dignidade possível.
Em um velho; amarelado e substancioso volume de As maravilhas da matemática, de Malba Tahan; no qual não pude encontrar data, local ou editora; constatei a existência de um curioso enunciado de muitas páginas, que o autor identifica como “Lei da Média-Extrema Razão” ou “Lei da Proporcionalidade Áurea” – (proporcionalidade de ouro). E faz, no meu entendimento; uma explicação muito sábia; em que transfere para dados numéricos a proporção da totalidade (100% - cem por cento); para as dimensões numéricas de 38%(trinta e oito por cento) sobre o contexto e 62%(sessenta e dois por cento) sobre o eixo. O que aqui tento explicar como uma saída política para enxergarmos e atacarmos de frente a questão das desigualdades sociais e seus dramas contra a qualidade de vida humana em sociedade; frente à distribuição dos meios de sobrevivência e de todos os valores e circunstâncias vivenciais daí decorrentes.
Mais tarde, descobri que o cientista social brasileiro W. de Gregori (casualmente residindo agora em Brasília); utiliza destes mesmos conceitos em seu precioso livro: Capital intelectual e administração sistêmica(2 000), de onde retiro a seguinte citação:
Segundo De Gregori, se, por exemplo, uma organização tem um lucro líquido, digamos de R$ 100,00 (cem reais) no final do mês, então, pela lógica natural das coisas; os R$62,00(sessenta e dois reais) deverão ser destinados para a remuneração do capital. Inclusive constituindo o lucro capitalista da empresa; e, logicamente; os R$38,00 (trinta e oito reais) restantes, seriam legitimamente destinados à remuneração do trabalhador que foi quem realizou o efetivo produto. Assim, teríamos o equilíbrio dinâmico sem ganhos ou perdas exageradas para quaisquer dos lados; garantindo assim uma sobrevivência digna para ambos.
Mas, segundo as explicações dos citados autores, o que acontece por razões eminentemente competitivas é que ao invés dos meios de produção e da riqueza serem distribuídos na proporção de 38% X 62%(trinta e oito por sessenta e dois por cento); eles são criminosamente separados em grupos de 10% X 90%(dez por noventa por cento). Ou sejam, os 10%(dez por cento) que detêm o capital; ficam com os 90%(noventa por cento) dos bens; da renda; dos recursos. Por fim, são muitos recursos e meios para pouca gente; sendo que o contrário se reflete antagonicamente da mesma forma; ou sejam pouquíssimos recursos e meios para muitas pessoas. Daí o fator da desigualdade. Enquanto uns poucos detêm tudo, todos os demais se debatem em busca das migalhas que sobram; o que pode ser analisado e planificado em todas as realidades sociais, das mais simples às mais complexas.
O autor apresenta, como ponto explicativo a “Teoria das Pirâmides Invertidas”, onde na representação dos grupos sociais, a ponta da pirâmide representa os dez por cento, que fica, automaticamente com o acesso aos noventa por cento que figuram na pirâmide invertida colocada imediatamente em sua frente. Sendo que a situação inversa é também correlata, ou seja, os noventa por cento das pessoas ficam com os míseros dez por cento restantes da riqueza produzida. Ao contrário da situação anteriormente descrita; são muito poucos recursos que se destinam a muita gente. Daí, é claro, a carência, a miséria, a dependência, o sofrimento material e a fome; o que, em última análise, sintetizam a própria desigualdade social que aqui discutimos.
Na família, nas relações do dia-a-dia, esta dimensão se repete. Embora, estrategicamente filtrada nos mecanismos de afeto, carinho e confiança que de verdade, ou simbolicamente, como um instrumento para negligenciar ou ocultar a competição que acontece em casa. Este conflito permanece escondido; indo depois explodir no campo social quando este agente da família tiver, mais tarde, meios ou instrumentos para extravasar sua mágoa acumulada. Seja no exercício da sua função profissional, como pai, como mãe ou em qualquer outra situação de poder que a vida lhe proporcionar (Costa Neto, 2 001).
Esta visão de proporcionalidade que pode, ao meu ver, ser considerada como uma nova proposta de análise para buscar soluções para o problema da desigualdade, que não limita ao plano econômico; mas, é claro; começa aí nas sociedades capitalistas, se encontra completamente fundamentada na obra de Müller (1 958). No seu trabalho em muitos volumes, em que a partir da denominação de “Instrumentos Basilares da Teoria da Organização Humana – T.O.H.” implementado por meio de pesquisas sociais feitas pela Escola de Sociologia Política da Universidade de São Paulo – USP; de cujos elementos surgiram vários movimentos de base comunitária e de redimensionamento da concepção política e da cidadania; inclusive, alguns deles; liderados e mantidos pela ala progressista da CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, dentre os quais destacamos a Teologia da Libertação (que se é teologia, como pode ser da libertação?); liderada pelo arcebispo católico brasileiro, Leonardo Boff.
Acredito que uma criteriosa análise desta questão da proporcionalidade mereceria especiais cuidados, sendo um fator da mais extrema importância a ser utilizado em todas as práticas sociais, visando solucionar o eterno problema das grandes desigualdades, principalmente materiais e econômicas que significam o vetor da qualidade de vida das pessoas, numa sociedade marcada pelo vínculo quase que exclusivo do ter. O que a moderna antropologia nos explica como similaridade dos fenômenos, conforme Laplatine(2 000), e que se desdobra em todos os aspectos.
Portanto se o exemplo acima se aplica na distribuição real ou simbólica dos lucros de uma organização - ou na disputa de crianças para ver quem fica com a última bala do pacote -; certamente podemos ampliar este raciocínio para os grandes domínios do poder; as definições políticas; as redes internacionais, a economia mundial; a degradação da natureza e dos recursos naturais em todo o mundo. Inclusive, uma das minhas intenções no Doutorado em Sociologia é o aprofundamento do estudo desta tese; para o que tenho pensado profundamente em convidá-lo; Professor Pedro Demo para orientar-me e, de antemão; já gostaria de saber o que o senhor pensa a respeito, no que fico no ansioso aguardo da sua resposta.

REFLEXÕES TEÓRICAS COMPLEMENTARES

Analisando ainda a desigualdade social como um fenômeno histórico e cultural, conforme retrata Demo (2 004), quando nos fala da sua essência no cotidiano das sociedades, enquanto acompanha a dinâmica evolutiva da história do homem no mundo. Como um fenômeno estruturado, parece que a desigualdade caminha num sentido contraditório, e ao mesmo tempo, paralelo à própria evolução dos meios tecnológicos. Sendo que, quanto maior a evolução técnico-eletrônica; proporcionalmente maior se torna o fenômeno da desigualdade em todo o mundo “civilizado”. E isto não acontece apenas do ponto de vista quantitativo, mas também, qualitativo.
Em progressões que tento explicar como sendo: temos hoje muito menos ricos e muito mais pobres. Com a agravante humana, política e social que os “poucos” ricos são escandalosamente muito mais ricos. Enquanto os muitos milhões de pobres (ou seja, uma quantidade muito maior) são assustadoramente mais pobres; alcançando níveis da mais absoluta e insustentável miséria; para um percentual muito grande de homens, mulheres e crianças em todas as partes do mundo.
Na base do problema da desigualdade está o da dominação. Entende-se por ela o fenômeno de comando que um grupo (geralmente minoritário) exerce sobre o outro (geralmente majoritário). É um fenômeno necessariamente social porque supõe relacionamento e condicionamento de dois lados, mas é, sobretudo, social, porque supõe desigualdade (Demo, 1 985).
Há pensadores que defendem a idéia da possibilidade de uma variante histórica frente à sua evolução; que o têm demonstrado em nível das constatações dos fenômenos sociais geradores da pobreza da humanidade; principalmente nos últimos tempos.
Só para exemplificar, pois foge ao objeto do presente ensaio, análises mais profundas de intermináveis fenômenos causadores da desigualdade social, podemos citar a notória presença da educação formal das pessoas por meio dos instrumentos estatais e particulares de educação. Estes, por sua vez; como correntes de ação igualmente determinadas pelos órgãos do governo; cujo objetivo é, de fato, perpetuar a ignorância material das massas para tê-las sob o jugo da dominação e da exploração do homem pelo homem; por meio de técnicas e instrumentos cada vez mais sofisticados de se conduzir tais processos pela via da história da humanidade(Costa Neto, 2 003).
A pós-modernidade retrata que tudo muda, mesmo que lentamente. O que, no caso da desigualdade social denota um princípio de lentidão e pastosidade históricas; até porque o ciclo de vida do ser humano é demasiadamente curto; não presenciando assim transformações consideráveis, o que dá a impressão de ser um fenômeno estático ao longo do tempo. Sempre se ouve falar em desigualdade social e, ao que parece ela apenas engrossa suas fileiras; aumentando sua dimensão e se perpetuando em todo o mundo contemporâneo.
Assim, historicamente o caos se estrutura e o “vir a ser” da sociedade não obedece a um contorno linear. E desta feita, a desigualdade não é sempre a mesma, mas ocorre em ciclos sempre com maiores e diferenciadas dimensões.
Se analisarmos em sua sutileza, podemos citar o declínio acentuado da classe média brasileira nos últimos vinte anos; o que aparentemente não parece significar muito, mas na verdade representa um declínio econômico na ordem de muitos milhões de dólares, o que é acompanhado de perto pela queda sócio-cultural e da qualidade de vida como um todo. E no meu entender, são estas as minúcias das quais decorrem o fenômeno sócio-político; nosso efetivo objeto de estudo.
A cada recomeço da história, a dinâmica muda; a própria conjuntura da existência viva tem como base a mudança. Quantitativa ou qualitativa, ou ainda em ambos os aspectos ela tem que, necessariamente acontecer. As estruturas que permanecem são as que mudam. O ser humano muda. Quantas mudanças históricas acompanhamos que são vividas pela igreja, por exemplo, que continua aí firme como uma das mais sólidas e antigas instituições? Por isso a desigualdade persiste. Ela é dinâmica, ataca diferentemente classes sociais distintas em cada um dos ciclos da história; tendo como causas básicas pobrezas e misérias que igualmente se articulam em pólos por vezes até antagônicos que eu chamaria didaticamente de “pobreza da pobreza” – pois o pobre é pobre politicamente, culturalmente; é pobre de concepção, de crença, de vontade. É uma vítima incauta de sistemas de valores, comunicação e crenças que fazem com que eternize a sua pobreza e ainda, reze e agradeça por ela.
Por outro lado, temos a “pobreza da opulência” – que leva o rico a ser política e culturalmente pobre – e até mais pobre - arrogante, competitivo, egoísta e centralizador; sem condições de perceber que este estilo cético e frio de levar a vida só acelera as diferenças sociais que, historicamente acabará por também atingi-lo.
Atuar em processos de reduzir desigualdades sociais é encarar, de imediato, esta dupla dificuldade; este obstáculo que se torna absolutamente intransponível: “a pobreza da pobreza” e, ao mesmo tempo, a “miséria da riqueza”, que são pontos absolutamente antagônicos e capazes de emperrar quaisquer tentativas de operacionalizações de mudanças concretas neste campo de ação. Daí a perpetuação do fenômeno que já é caracterizado como histórico e estrutural; porque resiste e se amplia enquanto persistir a vida humana em sociedade. Como continuamos presenciando por gerações a fio. O fenômeno da desigualdade sempre se apresenta com novas e maiores dimensões; atingindo cada vez a mais pessoas e ampliando o seu grau de gravidade, tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo.

CONCLUSÃO

A indução de fatos repetitivos leva à generalização, Popper (1 974); que é impraticável e ilógica. Nada é genericamente a mesma coisa ao longo do processo dinâmico da história; nela não há linhas retas. A complexidade social exige outras medidas e a contextualização e o redirecionamento dos estudos teóricos clássicos para que possam dar respostas válidas aos problemas reais e contemporâneos, tal como eles se dão na realidade concreta que aí está.
Claro que além de generalista é, também, absolutamente simplista afirmar que as sociedades serão sempre desiguais. Primeiro porque sempre é muito tempo, e, segundo, porque os ciclos evolutivos da história não obedecem a nenhuma objetividade, pelo menos, aquela cientificamente mensurável ou previsível. Mas, pelo mesmo entendimento dos processos históricos que vêm se repetindo ao longo dos milênios; é mais que coerente e pertinente se preparar para que as sociedades sejam desiguais. É uma questão da lógica probabilística, com a inserção de valores quânticos; que gozam hoje da mais profunda respeitabilidade científica em muitas arenas do pensamento científico contemporâneo.
A desigualdade social tem sido uma verdadeira tendência, pelo menos, até o presente momento histórico vivido pela humanidade. Até porque a sociedade humana quer, a despeito de toda a evolução e disponibilidade de recursos e meios, continuar sendo profundamente desigual. Pois só a desigualdade garante a supremacia de uns sobre outros. E ainda, somente ela é que garante que uns cozinhem para que outros comam. Que uns sujem para outros limparem, e, enquanto alguns dormem confortavelmente outros suam nos campos; se sangram e morrem na guerra. Como muito bem nos fala Churchman (1 972), quando defende a adoção de um novo paradigma sistêmico, para só assim começarmos a pensar em instrumentos que pudessem contribuir na busca de solução para os grandes problemas do mundo, dentre os quais, certamente, deveríamos listar a grave desigualdade social entre os povos do Planeta.
A concepção dual da sociedade dá a um lado o poder de decidir, os recursos e os meios de ação; a respeitabilidade para agir; os instrumentos para vencer, e, depois, se assusta com o caos, o sofrimento, a fome, a miséria, a opressão; a violência. É um fenômeno, no mínimo estranho que se confunde com a falta de visão e de responsabilidade social, numa concepção de vida absolutamente egoísta e centrada em si mesmo. Falta solidariedade; os princípios éticos, e, acima de tudo; a coerência para com a luta e a vivência social no sentido de atender aos interesses das massas oprimidas e famintas.
É mais que tempo de abandonarmos determinados rigores evidentemente burgueses e ultrapassados para que a ciência possa, de fato, exercer a sua função mínima: a de servir igualmente a todos os seres humanos, buscando compatibilizar os meios de uma sociedade democrática, igualitária e livre, e por que não? – uma sociedade feliz.
Não podemos mais repetir os erros do passado. Ou vamos continuar sendo uma sociedade realmente “escravocrata” e sem vontade política para resolver este problema? Basta de só falar em democracia e consciência política do povo; mas devemos fazer a palavra andar no sentido da concretização do seu ideal maiorl; colocando um fim definitivo na era da sociedade excludente, em que a grande massa da população continua àmargem de tudo o que possa beneficiar as pessoas. É preciso que comecemos a relativizar as questões do caos social, do crescimento, da qualidade de vida; da transformação da conjuntura da vida humana; onde todos passem a ter direitos e meios de viver com dignidade, decência, água potável, espaço, lazer, saúde, educação, ar respirável... “comida, diversão e arte...”.
E, para finalizar, como sou amigo íntimo da poesia, gostaria de citar uma página musical do nosso Milton Nascimento. “Caxangá”; uma canção popular brasileira que considero um dos mais belos e vibrantes protestos político-sociais de nossa arte musical, em que, em sua letra pergunta: - “Veja bem meu patrão, como pode ser bom? – Você trabalharia no sol e eu tomando banho de mar!...”

(*) Administrador, especialista em gestão de pessoas e sociologia do desenvolvimento. Mestre em educação e concluinte do doutorado em Sociologia da educação e contemporaneidade, pela Universidade de Brasília-UnB.É professor universitário, pesquisador, conferencista, consultor de empresas e escolas, autor de inúmeras obras fundamentadas na CSP, dentre as quais a Metododologia do Planejamento Sistêmico-Contingencial; Pesquisa para Holodiagnóstico em Gestão de Pessoas; Projeto Pedagogia da Complexidade, além dos ivros: Educação alienante existe; Paradigmas em educação no novo milênio e Escolas & Hospícios - ensaio sobre a educação e a construção da loucura.

Contatos: antoniocneto@terra.com.br



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPRA, Fritjof. Ecologia profunda: um novo renascimento para uma vida perene. REVISTA DOS FRACTAIS. Nova Fronteira (nº l47. Vol, 02, dezembro), 2 001.

CHURCHMAN, C, West. Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 1 972.

COSTA NETO, Antonio da. Sociedades e conflitos: uma miniatura das relações familiares. In. PROPORCIONALISMO OU CAOS? São Paulo: Lorosae, 2 001.

_________. Paradigmas em educação no novo milênio. Goiânia: Kelps, 2 003.

DE GREGORI, Waldemar. Capital intelectual e administração sistêmica. São Paulo: Pancast, 2 000.

DEMO, Pedro. Desigualdade social: fenômeno histórico ou estrutural? UnB/SOL (mímeo), 2 004
_________. Pobreza da pobreza. Petrópolis: Vozes, 2 003.

_________.Sociologia: uma introdução crítica. São Paulo: Atlas, 1 985.

LAPLATINE, François. Aprendendo antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2 000.

MÜLLER, Antonio Rubbo. Elementos basilares da teoria da organização humana. Fundação Escola de Sociologia Política/USP: São Paulo, 1 958.

POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo: Edusp, 1 974.

TAHAM, Malba. As maravilhas da matemática. (mímeo) s/l – s/d.

TAVARES, Clotilde. Iniciação à visão holística. Rio de Janeiro: Nova Era, 2 000.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

AFINAL, QUEM É ESTE FELIPE MASSA?


Este é mesmo o país da mais absoluta inversão de valores. Depois do famigerado e inexplicável desaparecimento de Michael Jackson, que tudo acobertou, deixando como mínimos os escândalos de todas as ordens em que o país mergulha, agora o acidente com um tal de Felipe Massa é a bola da vez. Afinal, o que de tão importante faz este moço pela qualidade de vida da família brasileira? O trabalho que ele faz resulta em alguma forma de educação, de segurança, de comida na mesa, de saneamento, de ecologia? Não consigo entender porque, embora sendo um ser humano e que o seu sofrimento, a sua dor devam ser reduzidos ao mínimo, sendo, para isto, assistido, amado, resguardado. Mas, por que afinal ele é mais igual do que os iguais, já que a constituição diz que todos somos ramos da mesma árvore e gozamos como cidadãos dos mesmos direitos?
Pais e mães de família morrem aos montes todos os dias, atropelados, vítimas de balas perdidas, de fome, de frio, por falta de uma assistência mínima nos vergonhosos hospítais públicos. Sobre estes, nem mesmo a coluna policial publica nada, enquanto deveria denunciar os crimes bárbaros do governo, a omissão social, a barárie humana que nos consome a cada dia. É que as crianças mortas, os pais analfabetos, as mães desdentadas não dirigem, não conhecem as pistas dos autódromos sofisticados do mundo, não ganham as corridas repassando a imagem petética do pão e do circo que rende fartos milhões de dólares para as grandes rodas internacionais, os negócios de ouro que fazem as grandes fortunas em volta do mundo, às custas, é claro, da fome do povo.
Ao longo da minha vida já presenciei a luta frenética de tanta gente que estudou pra caramba, se debruçou sobre pesquisas, tratados, teorias e práticas, varando noites, ficando sem comer, submetendo-se a concursos, a vestibulares concorridíssimos, abrindo mão de sonhos, alegrias, festas, aventuras para prestar serviços às pessoas, à saúde, à vida. Homens de mãos calejadas que plantam as roças, cultivam os alimentos que nos nutrem. Mulheres, operárias, professores, policiais, cientistas, carroceiros que, estes sim, desbravam almas, descobrem caminhos, contribuem de fato para que a vida melhore. E depois morrem, muitas vezes como célebres anônimos que são esquecidos horas depois de seus sepultamentos.
Ficam as perguntas: O que teria de tão importante e inaltecedor a fórmula 1? Que significado real tem o vencer as curvas dos autódromos em altas velocidades que encandecem a competitividade entre os homens e que depois é filtrada nos mecanismos violentos e destruidores da vida de muitos, de inocentes, de nós mesmos? Quantas pessoas terão morrido nas filas inumanas dos hospitais públicos nestes dias em que o Felipinho repousava sua carinha bonita no hospital de luxo em Budapeste? No fim das contas quantos pratos de comida custam a fantástica viagem sem necessidade num avião-ambulância enquanto a maioria não tem nem mesmo um analgésico para minimizar dores insuportáveis? O que deveríamos mesmo era nos envergonhar de tudo isso.
Não sei e nem quero saber quem é este tal de Felipe Massa, mas concluo que seja gente, pessoa, ser humano. E como tal, é um elo tão importante como os pobres de uma favela, as crianças famintas que sobrevivem esquálidas nas periferias da áfrica, nos guetos, nos repúdios sem fim deste mesmo Brasil que tanto lastima e sofre com os poucos pontos em sua testa. Pontos estes, não conseguidos no trbalho duro e digno da construção civil, na guerra contra a violência urbana, mas, ao contrário, na busca inútil de um banho de champagne francês, de uma velocidade acima do poder humano como se pudesse voar em busca de cifras, dos aplausos vazios, da exacerbada luta materialista e desprezível que acaba por sucumbir-nos ao caos, ao desalento e à miséria.
E para isto é preciso que os Felipes sejam encantados na categoria de celebridade como se muito bem fizesse ao país, aos brasileiros sem pátria que rezam por ele como quem inocentemente aplaude seus algozes. Claro que S. Exa. Felipe merece meus respeitos e as congratulações dos brasileiros - principalmente dos pobres e alienados - que dele recebem alguma alegria como forma de ocultar suas carências e necessidades. Mas em termos de importância, sou muito mais eu, que, dentro da minha insignificância e anonimato, estudei muito mais, luto, trabalho, batalho, ensino, dando assim, uma contribuição bastante sólida para este povo sofrido. E nem por isso, minhas dores, sofrimentos, angústias, febres, acidentes são publicados. Nem mesmo no mural do condomínio onde moro. Pobres de nós. Quando seremos acordados deste pesadelo?
______
Antonio da Costa Neto

domingo, 2 de agosto de 2009

SUCESSIVAS VITÓRIAS NO VÔLEI: NOSSA DESGRAÇA E NOSSA PERDIÇÃO


Uma das minhas imagens sempre presente é a de ser um sujeito crítico. E dizem até, radical demais. Uma pessoa para quem nada e nem ninguém prestam. Concordo. Sou mesmo muito crítico e penso ainda que toda criticidade é pouco frente aos rigores, horrores e perigos sob os quais nós vivemos e que todos os dias aumentam, levando a vida a padrões quase que insustentáveis. Criando problemas dificilmente solucionáveis para todo o futuro da espécie humana, infelizmente.
Mas de tudo, o que mais critico é a educação, são as escolas e os esportes. Primeiro porque sou um profissional da educação. Sempre trabalhei em escolas e nunca vi nada mais perdido mais às avessas do que esta grande área do conhecimento humano e da ação social. Ao contrário do que possa parecer, a velha escola não poupa esforços, métodos, técnicas e recursos para mais alienar as pessoas, torná-las tolas, atrasadas e manipuláveis. Quanto mais freqnuentam as escolas, mais elas se tornam neutras aos meios políticos que definem a história do mundo, fazendo-as sucumbir, sem que saibam a toda a sorte de exploração, miséria, fome, dor e sofrimento. E os educadores, mais do que imbecis, ainda batem no peito e se ufanam desta, que para eles, seria a maior das façanhas. Coitados!...
Vejo com muita dor que as escolas se perderam em meio aos complexos ciclos da história. Elas ficaram completamente sem o rumo, a vergonha, as estratégias e seus profissionais, tão cedo irão desconfiar da imensa farsa a que se prestam em todos sentidos, momentos e ações do processo educacional ao qual dedicam suas vidas, seus esforços, muitas vezes com profundas renúnicas.
A escola, é claro, abre as portas para a alienação das pessoas, na condição do maior e do mais importante aparelho ideológico a serviço do Estado opressor. E faz-se acompanhar bem de perto por outro monstro sagrado: o esporte, este instrumento diabólico, que nos sorri como uma criança, enquanto crava-nos as unhas no peito, fazendo-nos rebaixar aos interesses espúrios a que defende, por meio dos instrumentos lúdicos que utiliza para, de certa forma, usar massas inteiras de trabalhadores, eleitores, de cidadãos comuns.
E, à medida em que a economia se torna mais devastadora, o capitalismo mais competitivo, as dinâmicas da sobrevivência mais árduas, o esporte vai, por si mesmo, sofisticando suas táticas e afiando suas garras para de forma mais plena e mais fácil, prender as vítmas incautas, pelas quais enriquece os ricos e empobrece os pobres por exemplo. E por meio do lúdico, da força coercitiva que o esporte representa, tudo aparece como simples, perfeito, bom, legítimo e normal. Enquanto isso, presenciamos a destruição dos sonhos, das esperanças, das condições de vida, principalmente, para os mais pobres e necessitados, os trabalhadores, as classes sociais dependentes.
Assim, o país do futebol - um esporte competitivo, bruto e para homens, passa também a abrigar as mulheres nesta modalidade simbólica do crime, da exploração e do ganho a qualquer custo. E com as mulheres em cena, a imposição de regras, a punição, o forjar um conformado feliz, pois a não conformidade com a regra injusta no esporte, não aperfeiçoa o jogo, mas expulsa quem se revolta. Exercendo, assim, o poder da lição de que só vence quem se acomoda, quem se cala e obedece aos limites unilarais e impost0s - pois quem joga, não participa da elaboração das regras que tem que obedecer, mas recebe-as prontas, no magnetismo positivista da "ordem e do progresso" tão claramente traçados no pavilhão nacional. O que, ao meu ver constitui o maior crime que os deportos cometem na vida das pessoas. O que se associa à criação gratuita de mitos, de celebridades financeiras sem formação, cultura e até caráter, o que torna-se mais fácil, meiga, romântica e aceitável.
Mas se o futebol já é por si um esporte de extrema competição, que só tem graça com o externar da arrogância, da força, da brutalidade linear; o vôlei, embora tenha estrategicamente um formato mais ameno, é, ao contrário, muito mais gritante, humana e socialmente maléfico em termos da demanda vivencial, que pela sua exibição vai fazendo acontecer ao longo do processo da vida das pessoas. Desta feita, é claro que o futebol é desgraçadamente competitivo, elitista, um instrumento de alienação de concentração do poder e da renda. Mas o vôleibol é muito mais que isto. E por esta razão, embora não-confessa, o Brasil, de país do futebol vai se tornando lentamente, o país do vôlei. Pois este é um esporte muito mais naturalmente masculino e feminino ao mesmo tempo - vez que o futebol de mulheres sofre de um certo preconceito que faz com que muitos torçam-lhe o nariz . E o vôlei é mais aceito como uma forma de exploração alinhada, natural contra todos os seres humanos, independente de condição, gênero, raça, com o que se refastelam os detentores do capital e do poder político de decidir em favor deles próprios.
Uma partida de vôlei é muito mais intensa, brusca, rápida. No vôlei não se respira, não se descansa, não pára. A coisa é mais bombástica, mais louca, estantânea, imediata. É proibitivo ter tempo para qualquer reflexão. Tudo é , aqui e agora, sob pena de se perder totalmente a graça o glamur, o encanto. No final de uma boa partida de vôlei, todos estão exaustos: atletas e pláteia, e, portanto, prontos para todo e qualquer tipo de exploração e sem nenhum questionamento.
A linearidade do registro das vantagens conduz, de forma muito mais matemática o raciocínio em busca dos pontos, do referencial numérico que trás a vitória pronta, imediata, e, até certo ponto, se não considerarmos as concepções dialéticas que envolvem o processo ela é justa e legítima. Pois afinal, quem é o melhor, faz mais pontos é vitorioso e pronto. De nada interessa a figura dos que perdem, pois deles ninguém mais se lembra, não comenta. Melhor mesmo é esquecê-los, tal como acontece na realidade dura e cruel do cotidiano fora das quadras.
No vôlei as regras são bem mais rígidas facilmente impostas. As faltas e cobranças são por razões mínimas, imponderáveis até. Basta um esbarrão na rede, um milímetro do dedo ou do pé que invade, involuntariamente a área do adversário. O número de toques é exato, a mudança de um pequeno gesto, um passo em falso muda tudo. Para se ter mérito no vôlei é preciso controlar a respiração e, ao mesmo tempo, estar pronto para dar socos e urros muito bem direcionados, e até diria, animalescos, sob pena de cair fóra. O espaço é definido, uma simples rede separa as classes, os times, as posições. Os jogadores estão ao mesmo tempo muito próximos e distantes, muito mais do que se amam, se consomem e se destroem nesta guerra quase carnívora do ter que vencer. Do ter que ser o melhor.
Ou seja, no vôlei, a autoridade dos comandos é muito mais gritante, imediata, perversa, rígida, inflexível, dogmática, autoritária, sem limites e, por isso mesmo, muito mais emocionante, convidativa, envolvente.Portanto, ganhar no jogo é perder na vida. Torcer pela vitória é fazê-lo inconscientemente pela própria miséria, a exploração, a violência que nos avilta e da qual tanto queremos nos proteger, mas que buscamos, cegos, quando aplaudimos nossos atletas e nos vangloriamos das medalhas que ganham, dos salários que recebem, como se também fizéssemos parte do banquete especial, que em nome do povo sofrido eles se deleitam todos os dias.
Constituem fortunas e vivem lautamente vendendo-nos a ilusão da vitória, do prêmio, do mérito que esconde a miserabilidade de ser um brasileiro comum, submisso e explorado, também por força do esporte que muito contribui para silenciar e amortecer a sua consciência. Assim, somos um lugar a mais na massa dos torcedores, que se vazio, não fará a menor falta e ninguém notará. Gente sofrida, suada e consumida pelos mesmos regimes que nestes momentos se constroem e se impõem de forma lúdica e festiva sobre todos, sobre cada um de nós.
Sei que não é por agora, talvez pelos próximos dois mil anos, três, cinco, talvez nunca, mas espero que um dia, a inda tão incauta e inocente população, a torcida brasileira possa ver de perto esta grande dicotomia a que se submete pela ingenuidade política, que chega aos limites da ignorância, da omissão popular. O que, em última análise, os atletas, os comentaristas, os profissionais do esporte, são, sem que saibam, os algozes sociais mais pérfidos e maléficos contra o povo. Lutando contra a gente que sofre, as crianças que padecem, os pobres, os miseráveis, numa profunda inversão de valores.
Quem sabe, um dia, chegaremos lá. Sei que não estarei vivo para ver. Mas, de toda forma, espero que aconteça. Como ser humano, como cidadão, não podem me tirar esta esperança. Pelo menos isso.